A ditadura gospel e seus porquês


por Juliano Pozati


Quando eu era criança eu não podia emendar porquês. Se eu pedisse para ir em tal lugar e a resposta fosse não, era não e ponto final. Não tinha porquês. Isso não é exatamente culpa dos meus pais, porque os pais deles e os seus provavelmente também foram assim.

Aliás; uma geração toda foi assim, devido à influência da ditadura no Brasil. Num regime de ditadura não tem porquês, muito menos explicações. Não existe o diálogo aberto ou debate de idéias. As coisas simplesmente são e acontecem e se você não concorda é melhor disfarçar, antes que “disfarcem” você!

Roda Viva do Chico Buarque retratou esse conceito muito bem:
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira prá lá…
Ou ainda outro trecho que eu gosto muito:
A gente toma a iniciativa
Viola na rua a cantar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a viola prá lá…
Essa Roda Viva, como o Chico chamou a ditadura, aparece sempre atropelando as estrofes da canção, os desejos mais humanos do autor, por simples que pareçam, sempre a Roda Viva os controla, restringe e administra como bem entende.

Aquilo que se chama comumente de igreja ou religião tem uma característica que muito lembra essa Roda Viva: a inibição da palavra porquê e todos os seus significados e consequências. É impressionante como cada vez mais líderes a inibem, a reprimem e se possível a suprimem dos ambientes onde sua “autoridade celestial” comanda e não pode ser questionada. E o fazem da maneira mais covarde e manipuladora possível, vitimando uma multidão de pessoas simples e de certa forma inocentes. Eu identifico pelo menos 3 formas como o “porque” é reprimido pela “Roda Gospel”:

1. O discurso da obediência: Quem não é obediente é rebelde. Quem foi o primeiro rebelde? Lúcifer! Então, obediência vem do Espírito Santo, rebeldia vem do pai da mentira. Se você faz muitas perguntas que começam com porquê, está se opondo a ordem estabelecida, então já sabe.

2. O discurso da fé: Meu irmão, creia! E isso te basta! Você vai crescer muito quando parar de questionar e confiar mais. – Mas pastor, isso é irracional, ilógico, se eu ofertar o meu apartamento onde vou morar? Resposta fulminante – Oras você não tem fé? Não tentarás o Senhor teu Deus! – Mas bispo eu fiz a oferta, participei de todas as campanhas, vim à meia noite, paguei o carnê regularmente. Por que meu câncer só aumenta? – Irmã, faltou fé!

3. (O pior de todos) O discurso do exemplo de Jesus: Irmão, tem que ser como Jesus, que foi obediente até a morte e morte de cruz. Então seja obediente, tenha fé, e escute o pastor. Você vai ver que tenho razão. Tenho razão porque sim e pronto.

E assim, tudo fica sob o controle absoluto da autoridade quase messiânica do líder religioso. As ovelhas controladas e sedadas com os infalíveis discursos bíblicos depositarão sua obediência (e não só ela, como seus cheques, cédulas, moedas, títulos e tudo mais) aos pés dos novos apóstolos, numa barganha quase que absurda: eu acredito e finjo que não tenho os meus porquês e vocês, grandes homens de deus, continuam dizendo que são e fazem o que eu espero que façam.

Assim a “Roda Gospel” gira, numa ditadura espiritual absurda levando a inteligência e sensatez para lá. É um contexto que me lembra a frase de Anakin Skywalker ao seu mestre Jedi, quando já estava quase se entregando ao lado Negro da Força: “Eu trarei paz ao universo, nem que seja a força” Pelo fim, já não se pergunta mais o absurdo porquê dos meios.

As operadoras têm feito campanhas para desbloqueio de aparelhos. Eu começo uma nova: a do desbloqueio dos porquês. Faça-se essa pergunta. Seja livre o suficiente para se perguntar o seus porquês. Porque pagar um carnê? Porque Deus precisa de tantos dízimos? Porque ir a igreja se “Deus não habita em templos feitos por mãos humanas (Atos 19)”? Porque deixar de ficar com minha família para participar de 8 reuniões por semana? Porque não posso mais andar com aquele amigo que não vai a mesma igreja que eu? Por quê?

Exercite o seu cérebro. Pensar dói, mas faz muito bem! Saia um pouco dessa Matrix Evangélica. Existe vida no mundo lá fora! Cristianismo não precisa ser sinônimo de aposentadoria mental.

Porquê – Use sem moderação.

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Fonte: Duas Asas divulgado no PC@maral

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