Pode um crente cheio do Espírito Santo ficar possesso por demônios?

Porque não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas, sim, contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais. (Efésios 6:12)

A Palavra de Deus afirma que todo cristão está em uma frequente batalha, as afirmações do apóstolo Paulo em Efésios deixa claro para nós que esta batalha não é contra seres humanos, mas sim contra principados e potestades, contra os dominadores deste sistema mundial em trevas, contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais (Ef 6.12 KJV). As afirmações de Paulo nos levam a uma certeza: o crente está numa batalha espiritual. Entretanto, o grande questionamento é: em que proporções essa batalha ocorre, qual é de fato a relação do cristão nela em função de sua vida no mundo?

Este assunto é bastante extenso, há um número corriqueiro de literaturas que tentam explicar, algumas de forma até fantasiosa, esses mistérios envolvendo o mundo invisível, há também, por outro lado, um vasto número de experiências empíricas que produzem as mais diversas conclusões a respeito do assunto. Entretanto, propomos no presente artigo uma análise a respeito da atuação de Satanás na vida do cristão. Teria ele poder de possuir um crente salvo em Jesus? Teria ele o poder de ocasionar doenças em um crente salvo em Jesus, levando-o até mesmo à morte? Quais as implicações da graça de Deus e do sacrifício na cruz de Jesus na vida daqueles que são lavados no sangue de Cristo?

Há um movimento, chamado movimento de batalha espiritual, que acredita que a resposta para essas questões é sim. Acreditam que um crente, mesmo sendo fiel a Jesus, pode sim sofrer ataques e até mesmo possessão demoníaca. Infelizmente, boa parte dessa literatura se baseia no empirismo [1], ou seja, baseia-se em experiências vividas, em relatos de pessoas endemoninhadas e coisas do gênero. Mas, biblicamente temos razões para acreditar que a resposta para tal possessão (de um crente fiel a Cristo, lavado pelo seu sangue na cruz) seja não.

A morte de Cristo na cruz inaugurou uma nova etapa para a vida, a etapa da cruz. Na cruz Jesus conquistou uma nova vida para o crente e promoveu um resgate das trevas, porque “sabemos que os filhos de Deus não continuam pecando, porque o filho de Deus os guarda, e o Maligno não pode tocar neles” (IJo 5.18 NTLH). De igual modo, os reformadores possuíam uma convicção firme a respeito disso. Martinho Lutero, em sua poesia Castelo Forte cantada no Brados de Júbilo, afirma: “Se nos quisessem devorar demônios não contados, não nos podiam assustar, nem somos derrotados. O grande acusador dos servos do Senhor já condenado está; vencido cairá por uma só palavra”.

Os cuidados que precisamos ter nessa questão são dois: o primeiro é o de não superestimar as atitudes de Satanás, dando ênfase demasiada às suas atitudes; o outro é não subestimar, pensar que Satanás não existe. A existência de Satanás é algo concreto. No livro do Gênesis, no capítulo 3, é-nos contado que esse ser já atuava desde o início da criação. No entanto, nas páginas do Antigo Testamento, sua ação parece não ganhar muito destaque. Esse assunto não parece despertar grande interesse nos autores do Antigo Testamento. Devido a isso, são poucas as passagens relevantes.

Uma das únicas passagens que parece apresentar a ideia de possessão no Antigo Testamento é o caso de Saul, no capítulo 16 do primeiro livro de Samuel (não estamos afirmando aqui que o caso de Saul fosse de possessão, mas apenas uma referência que pode apresentar uma ação de Satanás; ao que tudo indica, o caso de Saul era de opressão, e não de possessão). A situação, no entanto, parece mudar nas narrativas dos evangelhos, onde os demônios aparecem atuando mais claramente. A manifestação explícita da ação de Satanás e de seus demônios se dá com a chegada de Cristo e com a inauguração do Reino de Deus. Na chegada do Reino de Deus através de Jesus, a ação de Satanás e de seus demônios não só é revelada como desafiada. Toda estrutura demoníaca é exposta e combatida por Jesus. Os evangelhos utilizam normalmente a palavra grega daimonion ou daimon, que se referem a seres espirituais hostis a Deus e aos homens. São espíritos maus, que atuam sob o comando de Satanás. São espíritos destituídos de corpo físico, tendo a capacidade de entrar numa pessoa.

Costumeiramente tem-se a tendência de dizer que a ideia de possessão era a maneira do povo do primeiro século referir-se a condições que hoje seriam chamadas de enfermidades mentais ou loucura. No entanto, os relatos dos evangelhos parecem fazer uma distinção clara entre doença e possessão. Por exemplo, Mt 4.24 diz-nos que eram trazidos “todos os que estavam padecendo de vários males e tormentos: endemoninhados, epiléticos e paralíticos”. A ideia de possessão na Bíblia tem a ver com o fato de uma pessoa ser tomada, ser habitada por um demônio. O termo utilizado para expressar essa ideia de possessão vem do grego Daimonizomai, ser possuído por demônio, ser endemoninhado, agir sob o controle de um demônio. Segundo o dicionário VINE, aqueles que são afligidos dessa maneira expressam a mente e a consciência do demônio ou demônios que neles habita (Lc 8.28). O termo aparece 7 vezes em Mateus, 4 em Marcos, uma vez em Lucas e João.

A Bíblia não informa sobre as condições que possibilitam uma pessoa ficar possessa, Cristo nos fala em Mt 12.44,45 que uma “casa vazia” pode ser ocupada. Podemos entender, através dos termos utilizados, que a ideia de possessão tem a ver com a habitação. O cristão é templo, habitação, morada do Deus Trino (Jo 14.16,17; 22,23; ICo 6.19), sendo assim, podemos deduzir logicamente que quem não tem a santa Trindade vivendo nele, está sujeito a ter como hóspede a Satanás (Mt 12.43-45; Lc 11.24-26). Não queremos dizer com isso que todo não crente está possesso, mas que a possessão ocorre na casa vazia, onde a santa Trindade não habita. Os demônios agem também através da influência demoníaca. A influência ocorre fora do corpo. A ideia de influência é muito clara na Bíblia. Satanás influencia Eva, sopra-lhe ideias que a levam a ir contra a ordem de Deus (Gn 3.1-5). Ele também influencia Davi, levando-o a fazer um recenseamento do povo (ICr 21.1). Na tentação de Jesus, todo o esforço de Satanás é de influenciá-lo a tal ponto de fazer com que ele caísse em suas propostas.

Satanás e seus demônios não podem possuir ou tomar o corpo dos crentes em Jesus, pois estes são moradas da Trindade. No entanto, ele pode influenciá-los, levando-os a pecar no intuito de afastá-los de Deus. A Bíblia nos orienta a resistir ao Diabo (Tg 4.7; IPe 5.8,9). Cada vez que um crente defende ou toma para si ideias malignas, seja em sistemas políticos, religiosos, artísticos, culturais, ele está sendo influenciado por Satanás, mas não possuído.

Que um verdadeiro cristão, um nascido de novo, não pode ficar possesso isso é inquestionável. “Sabemos que todo aquele que é nascido de Deus não está no pecado; aquele que nasceu de Deus o protege, e o Maligno não o atinge”, I Jo 5.18. Porém, a garantia de proteção é condicional: não estar no pecado, também conforme I Jo 1.7: “Se, porém, andarmos na luz, como ele está na luz, temos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado”. Quando não andamos na Luz, nós nos afastamos da comunhão e da proteção, mesmo frequentando a igreja. Com isso não estamos dizendo que qualquer crente em Jesus que pecar pode ficar possesso, o fato de o crente cair em pecado não dá o direito de o inimigo possuí-lo. O que queremos dizer com o “deixar de andar na Luz” é o mesmo que apostasia, quando o crente peca de forma deliberada e não busca o arrependimento. Para entendermos melhor, gostaria de traçar aqui um paralelo entre o herege e o apóstata. O herege é alguém que caiu em algum tipo de erro doutrinário, por consequência comete erro em sua conduta moral. Mais de modo geral continua sendo discípulo de Cristo, podendo ser restaurado. Em Tt 3.10, o apóstolo Paulo indica que há possibilidade de recuperação no início.

Segundo Champlin, na igreja pós-apostólica alguém era considerado apóstata mediante a renúncia da fé ou mediante o lapso moral, por haver cometido grandes pecados conscientemente e deliberadamente como o adultério e homicídio, sem se arrepender dos mesmos. Portanto, o apóstata é aquele que se afasta de Cristo, deixando de andar na luz, praticando pecado deliberadamente, mesmo estando na igreja. Pois há dois tipos de apóstata: o revelado, que assume seu estado, e o velado, que se afastou de Cristo, mas não da igreja por ter amigos e alguns privilégios.

Algo importante para se trazer à baila nesta discussão é saber diferenciar as doenças circunstanciais de uma possessão demoníaca. As mazelas do mundo ocorrem também de forma circunstancial, ou seja, como uma consequência da queda no Éden. A queda causou uma verdadeira catástrofe em todo o universo, é nesse sentido que Paulo afirma aos romanos: “sabemos que até hoje toda a criação geme e padece, como em dores de parto. E não somente ela, mas igualmente nós, que temos os primeiros frutos do Espírito, também gememos em nosso íntimo, esperando, com ansiosa expectativa, por nossa adoção como filhos, a redenção do nosso corpo”. A teologia chamará de mal moral e mal circunstancial. O mal moral é o pecado em todas as suas formas. Já o mal circunstancial é o mal que decorre do mal moral, que resulta em sofrimento, miséria, dores e doenças.

Já é certo que os cristãos estão sujeitos às mesmas mazelas no mundo, ou seja, também passam por privações, também são sujeitos a dores e sofrimento, assim como a doenças. O que não podemos fazer é confundir fatores clínicos com possessão demoníaca. É notadamente comum estabelecermos tais relações, principalmente quando estamos lidando com partes pouco conhecidas da mente humana. Doenças relacionadas ao cérebro são comumente confundidas com demônios. Uma breve consulta aos manuais de psiquiatria nos dá uma vasta lista de doenças relacionadas ao cérebro, do ponto de vista psiquiátrico temos: esquizofrenia, todos os variados tipos de neurose, depressão, psicose. As doenças neurológicas são diversas também: autismo, dislexia, encefalite, Alzheimer, Parkinson, entre outras. Temos ouvido a esse respeito e visto, ao longo da história, diversos crentes fiéis a Jesus Cristo passarem por essas doenças, assim como acompanhamos o sofrimento de suas famílias, casos como estes não podem ser confundidos ou mesmo relacionados com qualquer relação diabólica. Não estamos querendo dizer com isso que Satanás e seus demônios não estejam ativos no mundo; sim, estão, e provocam males sem fim à sociedade, entretanto, tais atos malignos não podem ser confundidos quando o que se deve tratar na verdade são doenças que atacam os seres humanos. Ainda há um grande mistério quando o assunto é a mente, uma histeria pode ser resultante de um grande stress emocional levando a pessoa ao choro teatral, ou mesmo à paralisia de membros do corpo .

Diante do exposto, conclusivamente podemos afirmar que a resposta para essa questão - se um crente salvo em Jesus pode ficar endemoninhado - é não. Embora o espaço não seja suficientemente grande para exaurirmos o assunto, é possível concluir, partindo de uma premissa simples: a vitória de Cristo na cruz. A vida do cristão parte da cruz de Cristo, e a Bíblia afirma em toda a extensão do Novo Testamento que na cruz Cristo derrotou todas as forças do mal. Cristo padece, morre e ressuscita; e como resultado dessa ação sobrenatural, ele declara vitória sobre as forças do mal para toda a eternidade. Este cenário é muito claro nas Escrituras: “despojando os principados e potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando deles na cruz”, Colossenses 2.14 e 15. A cruz de Cristo é o lugar onde ele triunfa sobre todas as potestades e principados do mal. Essa linguagem usada por Paulo é uma linguagem militar, retrata um soldado vencedor que despoja o derrotado de suas vestes e de suas armas, deixando-o completamente desarmado. Esse estado de Satanás nos permite ficarmos tranquilos em Cristo. São diversas as citações bíblicas que garantem ao crente em Cristo tranquilidade diante de Satanás, e todas elas expõem de forma direta um inimigo já derrotado por Cristo (Gn 3.15; Mc 3.26-27; Jo 12.31,33; 14.30; 16.8-11; Hb 2.14-15; Ap 20.1-3) . Outros textos poderiam ser citados, mas entendemos que estes são suficientes para determinar com clareza que Satanás já está derrotado por Cristo na cruz.

Como foi exposto acima, o crente pode sofrer tentações, pode sofrer os males ocasionados por este mundo, que aguarda ansioso a redenção em Cristo, mas um crente fiel em Cristo não pode ser possuído por Satanás. Ainda que tentado pelo Diabo, a Bíblia deixa claro de que forma ele (Diabo) deve ser resistido, ou seja, assumindo uma postura que considere à sua frente a cruz de Cristo e todas as suas implicações para os salvos no sangue de Cristo. Em outras palavras, a Bíblia nos orienta a vivermos através da perspectiva da cruz, escondidos no sacrifício de Cristo, vitoriosos através da sua vitória na cruz.

[1] - Na filosofia, Empirismo é um movimento que acredita nas experiências como únicas (ou principais) formadoras das ideias, discordando, portanto, da noção de ideias inatas.
O empirismo é descrito-caracterizado pelo conhecimento científico, a sabedoria é adquirida por percepções; pela origem das idéias por onde se percebe as coisas, independente de seus objetivos e significados; pela relação de causa-efeito por onde fixamos na mente o que é percebido atribuindo à percepção causas e efeitos; pela autonomia do sujeito que afirma a variação da consciência de acordo com cada momento; pela concepção da razão que não vê diferença entre o espírito e extensão, como propõe o Racionalismo e ainda pela matemática como linguagem que afirma a inexistência de hipóteses.
Na ciência, o empirismo é normalmente utilizado quando falamos no método científico tradicional (que é originário do empirismo filosófico), o qual defende que as teorias científicas devem ser baseadas na observação do mundo, em vez da intuição ou da fé, como lhe foi passado.
O termo tem uma etimologia dupla. A palavra latina experientia, de onde deriva a palavra "experiência", é originária da expressão grega εμπειρισμός. Por outro lado, deriva-se também de um uso mais específico da palavra empírico, relativo aos médicos cuja habilidade derive da experiência prática e não da instrução da teoria.


Bibliografia:

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LOPES, Augustus Nicodemos. O que Você Precisa Saber sobre Batalha Espiritual. Cultura Cristã, 2001.

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BUBECK, Mark I. O adversário. São Paulo, Editora Vida Nova, 2ª edição, 2009.

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REDDIN, Opal. Confronto de poderes. São Paulo, Editora Vida, 1996.

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DOUGLAS, J. D. Novo dicionário da Bíblia. CPAD.


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