Ressurgimento da Espiritualidade?

Não te maravilhes de te ter dito: Necessário vos é nascer de novo. O vento assopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito. (João 3:7-8)

Por Solano Portela em O Tempora! O Mores!



Vivemos em uma era de ressurgimento da espiritualidade. Durante décadas a ênfase foi na racionalidade e no raciocínio horizontal das pessoas, onde a religiosidade era considerada algo supérfluo e incômodo. Quem sabe, nos diziam, com mais alguns milhares de anos de evolução chegaremos à pura racionalidade e deixaremos todos essas manifestações religiosas como um resquício do passado animal da humanidade. No entanto, autores e psicólogos famosos, como Maslow (Abraham Harold Maslow: 1908-1970, que chegou a presidir a Associação Americana de Psicologia), passaram a tratar as experiências místicas, religiosas, transcendentais e espirituais, não somente como normais, mas como desejáveis na integração da personalidade. Espaço estava aberto, no campo secular e no ápice da pirâmide, para o abraçar, sem constrangimentos, da espiritualidade latente às pessoas.

Se há essa avidez por experiências espirituais em nossa sociedade como um todo, não é de espantar que as obras e autores no campo evangélico também viessem a se multiplicar, e não somente com autores do meio. Vários escritores católico-romanos foram agregados às publicações e catálogos de editoras evangélicas. Essa tendência seguiu-se a um interesse crescente pelos escritos de místicos medievais, tais como Tereza D’Ávila (1515-1582) e Thomas a Kempis (1379-1471). Surpreendentemente, vários autores liberais também embarcaram nessa apreciação, como Karen Armstrong (1944 -), que escreveu, “Visões de Deus: Quatro místicos medievais e seus escritos” (Visions of God: Four Medieval Mystics and their Writings, 1994). Em adição a isso, o cenário evangélico contemporâneo, dominado pelo subjetivismo e misticismo do neo-pentecostalismo, abunda em expressões que aparentam promover a espiritualidade, mas por vezes pouco têm a ver com os ensinamentos bíblicos.

A teologia reformada, que aceita a Escritura Sagrada como fonte de autoridade de conhecimento, especialmente na instrução religiosa que necessitamos, não tem qualquer problema com o reconhecimento de que o homem é um ser religioso (Romanos 2.15). Formado à imagem e semelhança de Deus, ele não se auto-completa em si mesmo, mas anseia pelo conhecimento e relacionamento com o transcendente. No entanto, a própria Escritura alerta que essa religiosidade se apresenta distorcida pelo pecado (Romanos 1.19-23). Espiritualidade, sem a diretriz da Palavra de Deus; sem o solo fértil de um coração transformado pelo Espírito Santo, baseado na obra redentora de Cristo Jesus; sem o poder do Evangelho para dar o entendimento e canalizar a devoção ao Deus verdadeiro; é algo mortal, enganador, que leva à destruição.

Por isso devemos procurar a verdadeira espiritualidade. Aquela que leva os nossos pensamentos ao Deus verdadeiro, em ação de graças por tudo quanto nos fez; aquela que procura estudar e aplicar os princípios normativos de Deus às nossas vidas; aquela que reconhece a centralidade de Jesus Cristo em todas as coisas (Romanos 11.36). Precisamos, portanto, fugir do subjetivismo que tem mirrado as mentes cristãs. Precisamos voltar à revelação proposicional e objetiva da Palavra de Deus. Não podemos nos deslumbrar ou nos enganar com a pretensa super-espiritualidade contemporânea, que pretendendo estar mais próxima de Deus em um enlevo místico-misterioso, no qual dialoga-se com Deus, recebe-se revelações; fala-se muito em amor, em vida, em ministério, em pregação, em poder, em maravilhas, em atividades, em louvor; enquanto que progressiva e paralelamente há demonstração de afastamento e desprezo para com a única fonte de revelação objetiva que Deus nos legou: As Sagradas Escrituras. Nessa jornada, não me empolgo com personalidades do passado, recicladas nesta onda mística, mas que compartilhavam a sua confiança de redenção em outros intermediários diversos, que não o Senhor Jesus Cristo.

Meditemos na pessoa e nos atos de Deus e em nossas responsabilidades para com Ele. Enraizemos o meditar nas Escrituras Sagradas. Ela serve de fio de prumo e de bússola ao nosso caminhar. Essa é a verdadeira espiritualidade, fundamentada na Palavra de Deus. Aquela que conduz à modificação de comportamentos estranhos às prescrições divinas, e que procura honrar a Deus na proclamação de Sua Palavra. Essa espiritualidade é reflexo da verdadeira teologia da reforma, que não é fria ou distanciada; que não é simplesmente acadêmica ou estéril; mas que é viva e produz frutos abundantes na disseminação do Reino de Deus, para a Sua glória.


Notas:

1. Achei por bem expressar minha compreensão desse tema, apesar de muito já ter se escrito sobre ele. Só neste Blog temos esses importantes artigos do Rev. Dr. Augustus Nicodemus (além de referências indiretas, em outros posts): Por que não abraço a espiritualidade? Sobre Espiritualidade, Místicos e Neo-liberais Small is Beautiful?
2. Este meu texto foi adaptado do prefácio escrito para o ótimo livro do Rev. Dr. Wendell Lessa - "Espargindo Luz: Reflexões Bíblicas que Iluminam a Vida" (Monergismo: 2010), que recomendo.


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