Ser bíblico: um desafio com muitas dimensões




Por Paul Freston em Revista Ultimato

O cristianismo evangélico é caracterizado pela vontade de ser radicalmente “bíblico”. Mas ser bíblico é um “desafio”, uma aspiração permanente, e nunca uma conquista ou posse nossa. É um horizonte que está sempre à nossa frente, como indivíduos e como igrejas. É um desafio com “muitas dimensões”, algumas das quais menciono aqui.

Ser bíblico significa reconhecer a amplitude da Bíblia - A Bíblia é como um país grande, que não se pode conhecer numa rápida visita de turista. E como todo país grande, tem regiões muito diferentes entre si -- umas mais determinantes do que outras.

Ser bíblico significa ser cristocêntrico na interpretação e no uso - Desde a igreja primitiva, lê-se a Bíblia toda por meio de Cristo. Ele é o centro, a chave interpretativa. Isso significa, entre outras coisas, que devemos ter cuidado para evitar a bibliolatria. O cristianismo é diferente do outro grande monoteísmo, o islamismo. O equivalente da Bíblia no islamismo não é o Alcorão, mas sim o profeta Maomé; e o equivalente do Alcorão é Cristo. No islamismo, vai-se ao Alcorão por meio de Maomé, mas no cristianismo vai-se a Cristo por meio da Bíblia. O propósito da Bíblia é levar-nos a Cristo, o Verbo de Deus. A bibliolatria é o desvio dos cristãos que se esqueceram da encarnação de Deus em Cristo. No cristianismo, o ápice da revelação de Deus não é um livro, mas uma pessoa.

Ser bíblico significa enamorar-se da estória bíblica e nela situar-se - Usei de propósito a palavra “estória”, não para negar a natureza “histórica” da revelação cristã, mas para enfatizar a natureza “novelesca”, ou seja, a fé cristã nos oferece uma estória com a qual podemos nos entusiasmar e nos identificar. Uma das funções de todo culto cristão é a lembrança dessa estória e o convite para nos situarmos novamente dentro dela, vivermos a nossa pequena estória à luz dessa estória maior. Como diz C. S. Lewis, “Para ser realmente cristãos, temos que não apenas concordar com o fato histórico, mas também abraçar o mito com o poder da imaginação”. O cristianismo tem a melhor estória do mundo, a melhor trama, a de um Deus que não apenas cria o mundo, mas entra pessoalmente nele; que não apenas entra no mundo, mas nasce como bebê e passa pelas fases normais de desenvolvimento; que não apenas vive, mas vive anonimamente, como pessoa pobre num país oprimido; que não apenas vive num país oprimido, mas é incompreendido e rejeitado por boa parte do seu próprio povo; que não apenas sofre, mas morre; que não apenas morre, mas morre de forma agonizante e indigna; e que não apenas se submete à morte, mas vence-a pela ressurreição. Mesmo que não fosse verdade, essa seria uma estória digna de ser “abraçada com o poder da imaginação”.

Ser bíblico significa imergir-se na cosmovisão bíblica - A Bíblia nos dá uma visão de mundo, um par de óculos através dos quais enxergamos a vida inteira. Um dos propósitos do contato regular com a Bíblia é o de nos saturar na visão bíblica do mundo, de aprender a “cultura” do reino de Deus. Assim como a pessoa que vai morar num país estrangeiro, nós precisamos aprender a cultura do reino, precisamos adaptar-nos a suas prioridades e seus valores. Tanto quanto aprender, isso envolve desaprender, pois Jesus inverte os valores do mundo e nos oferece um mundo impregnado de outros valores.

Ser bíblico significa ler a Bíblia em comunhão com a igreja de todos os tempos - Não podemos ser bíblicos sozinhos. Temos que ler a Bíblia na comunhão dos santos, que não apenas é local e contextualizada na nossa realidade, mas também é geográfica e historicamente dispersa. Devemos ler a Bíblia por meio dos melhores intérpretes, mesmo que estejam do outro lado do mundo ou tenham morrido há muitos séculos -- mas ainda nos falam por meio de seus escritos.

Ser bíblico significa entender a liberdade evangélica - Se ser evangélico é a vontade de ser bíblico, isso nos dá uma nova liberdade. A liberdade de não ter que defender determinadas tradições e execrar outras. A liberdade de examinar todas as tradições, avaliando-as pelos critérios da revelação e da relevância.

Ser bíblico significa ser calibrado nas ênfases - Devemos ser bíblicos também no peso que cada assunto tem na Bíblia. Quem é bíblico sabe dimensionar as questões e não exagera os temas secundários. Um pregador que fala 50% do tempo sobre um assunto que representa 0,05% da Bíblia não está sendo bíblico.

Ser bíblico significa cultivar o desejo santo do conhecimento - Como disse João Cassiano, no século 5º, “Enquanto há tempo, acenda dentro de si o lampião do conhecimento. Preserve aquele desejo da leitura que você tem, e se apresse a adquirir o conhecimento moral”.

Ser bíblico significa ser persistente - Nas palavras de Efrém, o Sírio (século 4º): No estudo de um texto bíblico, “quem encontrar um dos seus tesouros não deve pensar que ali existe somente aquilo que encontrou, mas antes, que ele foi capaz de encontrar somente aquilo. Dê graças pelo que você conseguiu tirar, e lembre-se que o que ficou também faz parte da sua herança. Por causa da sua fraqueza, você não foi capaz de receber tudo de uma vez, mas procure recebê-lo em outro momento, não desista”. A Bíblia é um poço inesgotável, mesmo para quem a estuda em profundidade há muitas décadas.

Ser bíblico significa ser humilde - Para João Cassiano, “é totalmente impossível que alguém que se dedica ao estudo das Escrituras somente para ganhar o elogio humano receba de fato o dom do conhecimento espiritual. Pois, nesse caso, ele estará aprisionado por outros vícios, sobretudo o orgulho. Se você deseja alcançar o verdadeiro conhecimento das Escrituras, deve apressar-se em alcançar a humildade do coração”. Ou, nas palavras de Walter Hilton (século 14): “Na Escritura Sagrada, Deus, que é a Verdade, se esconde sob o manto precioso da bela linguagem. Pois a Verdade somente se revela aos amigos que a amam e buscam com um coração humilde. Pois a verdade e a humildade são verdadeiras irmãs”.

Ser bíblico significa reconhecer a diversidade do corpo de Cristo - Diversidade, em vários sentidos. Primeiro, nos níveis em que a Bíblia funciona: psicológico, emocional, relacional, social, político, intelectual etc. Em segundo lugar, na diversidade das pessoas que leem a Bíblia: de diversos temperamentos, diversos níveis educacionais, diversas situações sociais, diversos momentos da vida. Mas a Bíblia é capaz de falar a todos. Como diz uma famosa frase, é como “uma poça d’água em que uma criança pode brincar, e um lago profundo em que um elefante pode nadar”. E, em terceiro lugar, nas diversas perspectivas contidas na própria Bíblia. Como diz novamente Efrém, “Quem é capaz de compreender as imensas possibilidades de cada uma de suas declarações? Deixamos para trás muito mais do que levamos. Muitas são as perspectivas de sua Palavra, como também muitas são as perspectivas daqueles que a estudam. Deus escondeu na sua Palavra todo tipo de tesouro, para que cada um de nós, toda vez que meditamos, seja enriquecido”.

Ser bíblico significa ser generoso - O nosso compromisso é com a expansão da religião bíblica, não com uma determinada instituição ou rótulo. Devemos aplaudir tudo o que for bíblico, onde quer que se encontre, inclusive entre não cristãos, não tendo medo de afirmar o que há de positivo em outras religiões, filosofias ou ideologias.

A recompensa: a formação da alma - Nas palavras de Cassiano: “Dedique-se à leitura sagrada para que a meditação contínua penetre a sua alma e a amolde à sua imagem”.


Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é professor colaborador do programa de pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e professor catedrático de religião e política em contexto global na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo, Ontário, Canadá. Freston é autor de Religião e Política, sim; Igreja e Estado, não e Nem Monge, Nem Executivo - Jesus: um modelo de espiritualidade invertida, ambos pela Editora Ultimato; e Neemias, Um Profissional a Serviço do Reino e Quem Perde, Ganha, pela ABU Editora

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