Eleição e Reprovação

Todos se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis. Não há quem faça o bem, não há nem um só. (Romanos 3:12)

Todos pecamos e merecemos a punição eterna de Deus e que Cristo morreu e obteve a salvação para nós. Neste artigo, vamos considerar a maneira como Deus põe em prática essa salvação na nossa vida. Damos início considerando a obra de Deus conhecida como eleição, isto é, sua decisão de nos escolher para sermos salvos desde a fundação do mundo. Evidentemente, esse ato de eleição não é (a rigor) parte da aplicação da salvação a nós, visto que se tornou disponível desde antes que Cristo obtivesse a nossa salvação, quando morreu na cruz. Mas consideraremos a eleição nesse ponto porque ela está cronologicamente no início dos tratos de Deus conosco pelos meios da graça. Portanto, ela foi concebida perfeitamente como o primeiro passo no processo através do qual Deus nos traz salvação individualmente.

Podemos definir eleição como segue: eleição é um ato de Deus, antes da criação, no qual ele escolhe algumas pessoas para serem salvas, não por causa de algum mérito antevisto delas, mas somente por causa de sua suprema boa vontade.

A. SERÁ QUE O NOVO TESTAMENTO ENSINA A PREDESTINAÇÃO?

Várias passagens no Novo Testamento parecem afirmar com muita clareza que Deus determinou de antemão quem seria salvo. Por exemplo, quando Paulo e Barnabé começaram a pregar aos gentios em Antioquia da Pisídia, Lucas escreve que “os gentios, ouvindo isto, regozijavam-se e glorificavam a palavra do Senhor, e creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna” (At 13.48). É significativo o fato de Lucas mencionar a eleição quase de passagem. É como se isso fosse acontecimento normal quando o evangelho era pregado. Quantos creram? “Creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna”.

B. COMO O NOVO TESTAMENTO APRESENTA O ENSINO DA ELEIÇÃO?

Sobre a eleição, é importante ver a doutrina da maneira como o próprio Novo Testamento a vê.

1. Como um consolo. Os autores do Novo Testamento muitas vezes apresentam a doutrina da eleição como um consolo aos crentes. Quando Paulo garante aos Romanos que “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito” (Rm 8.28), ele apresenta a obra divina da predestinação como razão pela qual podemos estar seguros dessa verdade. Ele explica no próximo versículo: “Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho [...] E aos que predestinou, a esses também chamou [...] justificou [...] glorificou” (Rm 8.29-30). Paulo quer dizer que Deus sempre age para o bem daqueles a quem chamou a si.

2. Como uma razão para louvar a Deus. Paulo diz que Deus “nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade, para louvor da glória de sua graça” (Ef 1.5-6). Semelhantemente, ele diz: “A fim de sermos para louvor da sua glória, nós, os que de antemão esperamos em Cristo” (Ef 1.12).

3. Como um incentivo à evangelização. Paulo diz: “Tudo suporto por causa dos eleitos, para que também eles obtenham a salvação que está em Cristo Jesus, com eterna glória” (2Tm 2.10). Ele sabe que Deus escolheu algumas pessoas para serem salvas e enxerga isso como um estímulo para pregar o evangelho, mesmo que signifique suportar grande sofrimento. A eleição é a garantia de Paulo de que haverá algum sucesso na evangelização, porque ele sabe que algumas pessoas com quem fala são eleitas, crerão no evangelho e serão salvas. É como se alguém nos convidasse para uma pescaria e dissesse: “Eu garanto que vocês pegarão alguns peixes – eles estão famintos e aguardando”.

C. EQUÍVOCOS A RESPEITO DA DOUTRINA DA ELEIÇÃO

1. A eleição não é fatalista nem mecanicista. Às vezes aqueles que fazem objeções à doutrina da eleição dizem que ela é “fatalista” ou que apresenta um “sistema mecanicista” do universo. Duas objeções relativamente diferentes estão envolvidas aqui. Por “fatalismo” entende-se um sistema no qual as escolhas e decisões humanas não fazem diferença alguma. No fatalismo, não importa o que façamos, as coisas continuarão seguindo seu curso previamente determinado. Portanto, é inútil tentar influenciar o resultado dos eventos ou o resultado de nossa vida esforçando-nos ou fazendo algumas escolhas importantes, porque, seja como for, não farão diferença alguma.

2. A eleição não se baseia na presciência de Deus sobre nossa fé. Geralmente as pessoas concordarão que Deus predestina alguns para serem salvos, mas dirão que ele o faz olhando para o futuro e vendo quem vai crer em Cristo e quem não vai. Se ele vê que uma pessoa chegará à fé salvadora, então predestina essa pessoa para ser salva, com base no conhecimento prévio da fé dessa pessoa. Se vê que ela não chegará à fé salvadora, então não predestina tal pessoa para ser salva. Desse modo, julga-se, a razão fundamental por que alguns são salvos e outros não encontra-se dentro das próprias pessoas, não dentro de Deus. Tudo que Deus faz na sua obra de predestinação é fornecer confirmação à decisão que ele sabe que as pessoas tomarão por si próprias. O versículo geralmente usado para sustentar esse ponto de vista é Romanos 8.29: “Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho”.
a. Conhecimento prévio das pessoas, não dos fatos. Todavia, esse versículo dificilmente pode ser usado para demonstrar que Deus baseou sua predestinação no conhecimento prévio do fato de que uma pessoa creria. A passagem fala, mais propriamente, que Deus conheceu pessoas (“aos que de antemão conheceu”), não que conheceu algo a respeito delas, tal como o fato de que creriam. É um conhecimento pessoal, relacional, que se tem em vista aqui: Deus examina no futuro a intenção de determinada pessoa de preservar a intimidade com ele, e assim ele “a conhece” há muito tempo. É nesse sentido que Paulo está falando sobre Deus “conhecer” alguém, por exemplo, em 1Coríntios 8.3: “Mas, se alguém ama a Deus, esse é conhecido por ele”. Semelhantemente, ele diz: “Mas agora que conheceis a Deus, ou antes, sendo conhecidos por Deus...” (Gl 4.9).

b. Em parte alguma das Escrituras encontramos que Deus nos escolheu por causa da nossa fé. Além do mais, quando olhamos além dessas passagens específicas que falam sobre esse conhecimento prévio e prestamos atenção nos versículos que falam sobre a razão pela qual Deus nos escolheu, descobrimos que as Escrituras nunca falam que a nossa fé ou o fato de que viríamos a crer em Cristo foi a razão pela qual Deus nos escolheu. De fato, Paulo parece excluir explicitamente a consideração do que quer que as pessoas pudessem fazer na vida da sua explicação do fato de Deus ter escolhido Jacó em vez de Esaú. Ele diz: “E ainda não eram os gêmeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal (para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama), já fora dito a ela: O mais velho será servo do mais moço.

c. A eleição baseada em alguma coisa boa em nós (nossa fé) seria o começo da salvação por mérito. Ainda outro tipo de objeção pode ser levantado contra a idéia de que Deus nos escolheu porque conhecia de antemão que viríamos a ter fé. Se o fator principal e determinante em nossa eventual salvação é nossa própria decisão de aceitar Cristo, então estaremos inclinados a pensar que merecemos algum crédito pelo fato de sermos salvos: ao contrário de outras pessoas que continuam a rejeitar Cristo, nós fomos suficientemente sábios em nosso julgamento, ou bons o bastante em nossas inclinações morais ou tivemos bastante discernimento em nossas faculdades espirituais para decidir crer em Cristo. Mas uma vez que comecemos a pensar dessa maneira, então diminuiremos seriamente a glória devida a Deus pela nossa salvação. Não nos sentiremos à vontade para falar como Paulo, que diz que Deus “nos destinou [...] segundo o beneplácito de sua vontade, para louvor da glória de sua graça” (Ef 1.5-6), e começamos a achar que Deus “nos destinou [...] segundo o fato de que ele sabia que teríamos suficientes inclinações à bondade, fé dentro de nós e que creríamos”.

d. Predestinação baseada em conhecimento prévio também não dá livre arbítrio às pessoas. A idéia de que Deus predestina algumas pessoas a crer, baseado no conhecimento prévio da fé que terão enfrenta ainda outro problema: após cuidadosa reflexão, esse sistema aniquila qualquer liberdade real do homem. Do ponto de vista desse sistema, Deus pode examinar o futuro e ver que a pessoa A vai exercer fé em Cristo, e que a pessoa B não vai exercer fé em Cristo; então esses fatos já estão fixados, já estão determinados. Se temos por verdadeiro que Deus conhece o futuro (o que tem de ser), então é absolutamente certo que a pessoa A crerá, mas não a pessoa B. Não há possibilidade de o desdobramento da vida delas ser diferente disso.

e. Conclusão: a eleição é incondicional. Parece melhor, pelas quatro razões prévias, rejeitar a idéia de que a eleição é baseada no fato de que Deus tem presciência de nossa fé. Concluímos em vez disso que a razão para a eleição é a escolha soberana de Deus – ele “nos predestinou para ele, para a adoção de filhos” (Ef 1.5). Deus nos escolheu simplesmente porque decidiu derramar seu amor sobre nós – não porque anteviu em nós alguma fé ou mérito.
D. OBJEÇÕES À DOUTRINA DA ELEIÇÃO

Deve ser dito que a doutrina da eleição apresentada aqui não é, de modo algum, aceita universalmente na igreja cristã, tanto no catolicismo como no protestantismo. Há uma longa história de aceitação da doutrina aqui apresentada, mas muitos outros também têm objetado. Entre os evangélicos conservadores, a maioria dos círculos reformados ou calvinistas (denominações presbiterianas conservadoras, por exemplo) aceitarão esse ponto de vista, bem como muitos luteranos e anglicanos (episcopais), e um grande número de batistas e membros de igrejas independentes. Por outro lado, ela será total e terminantemente rejeitada por quase todos os metodistas, bem como por muitos outros em igrejas batistas, anglicanas e independentes.

1. A eleição significa que não temos a opção de aceitar Cristo. Segundo essa objeção, a doutrina da eleição nega todos os convites do evangelho que apelam à vontade do homem e exige que as pessoas façam uma escolha ao responder ao convite de Cristo. Em resposta a isso, devemos afirmar que a doutrina da eleição é totalmente capaz de abrigar a idéia de que temos uma escolha voluntária e tomamos decisões espontâneas ao aceitar ou rejeitar Cristo.

2. Com base nessa definição de eleição, nossas escolhas não são escolhas reais. Prosseguindo com a discussão do parágrafo anterior, alguém pode objetar que se a escolha é causada por Deus, pode parecer-nos que seja voluntária e desejada por nós, mas não é uma escolha genuína ou real, porque não é absolutamente livre. Mais uma vez devemos responder desafiando a suposição de que a escolha deva ser absolutamente livre a fim de ser genuína ou válida. Se Deus nos faz de determinada maneira e nos diz que nossas escolhas voluntárias são escolhas reais e genuínas, então temos de concordar que são.

3. A doutrina da eleição faz com que sejamos marionetes ou robôs, não pessoas reais. De acordo com essa objeção, se Deus realmente é a causa de cada coisa que escolhemos com respeito à salvação, então já não somos pessoas reais. Mais uma vez deve ser respondido que Deus nos criou, e portanto devemos reconhecer que é ele quem define o que é a genuína pessoalidade. A analogia com uma “marionete” ou “robô” nos reduz a uma categoria subumana de coisas criadas pelo homem.

4. Da doutrina da eleição decorre que os incrédulos jamais têm a chance de crer. Essa objeção à eleição diz que se Deus decretou desde a eternidade que algumas pessoas não creriam, então não houve chance genuína para que cressem, e o sistema inteiro funciona injustamente. Duas respostas podem ser dadas a essa objeção. Primeiro, devemos observar que a Bíblia não nos permite dizer que os incrédulos não tiveram chance de crer. Quando as pessoas rejeitavam a Jesus, ele sempre lhes atribuía a responsabilidade pela escolha deliberada de rejeitá-lo, e não em algum decreto de Deus Pai.

5. A eleição é injusta. Algumas vezes as pessoas referem-se à doutrina da eleição como injusta, visto que ensina que Deus escolhe alguns para serem salvos e ignora outros, decidindo não os salvar. Como isso pode ser justo?
Duas respostas podem ser dadas a essa objeção. Primeiro, devemos nos lembrar de que seria perfeitamente justo que Deus não salvasse ninguém, exatamente como fez com os anjos: “Deus não poupou anjos quando pecaram, antes, precipitando-os no inferno os entregou a abismos de trevas, reservando-os para juízo” (2Pe 2.4). Seria perfeitamente justo se Deus fizesse com os seres humanos como fez com os anjos, não salvando nenhum daqueles que pecaram e se rebelaram contra ele.

6. A Bíblia diz que Deus deseja salvar todo mundo. Outra objeção à doutrina da eleição é que ela contradiz determinadas passagens das Escrituras, que dizem que Deus deseja que todos sejam salvos. Paulo escreve a respeito de Deus, nosso Salvador: “... o qual deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (1Tm 2.4).

Uma solução comum a essa questão (oriunda da perspectiva reformada defendida neste livro) é dizer que esses versículos falam da vontade revelada de Deus (declarando o que nós devemos fazer), e não de sua vontade secreta (seus planos eternos sobre o que irá ocorrer). Os versículos simplesmente nos falam que Deus convida e ordena cada pessoa a arrepender-se e achegar-se a Cristo para a salvação, mas eles não falam o que quer que seja sobre os decretos secretos de Deus com relação a quem será salvo.

E. A DOUTRINA DA REPROVAÇÃO

Quando entendemos a eleição como ação soberana da parte de Deus de escolher algumas pessoas para serem salvas, há então necessariamente outro aspecto dessa escolha, a saber, a decisão soberana de Deus de não levar em conta outras e não salvá-las. Essa decisão de Deus na eternidade passada é chama reprovação. Reprovação é a decisão soberana de Deus, antes da criação, de não levar em conta algumas pessoas, decidindo em tristeza não salvá-las e puni-las por seus pecados, manifestando por meio disso sua justiça.

F. APLICAÇÃO PRÁTICA DA DOUTRINA DA ELEIÇÃO

Em termos de nossa própria relação com Deus, a doutrina da eleição tem uma aplicação prática importante. Quando refletimos a respeito do ensino bíblico, tanto sobre a eleição como sobre a reprovação, é certo que o apliquemos em nossa própria vida individualmente. É razoável que todo cristão pergunte a si mesmo: “Por que sou cristão? Por qual razão decisiva Deus decidiu me salvar?”.

Teologia Sistemática. Wayne Grudem, Edições Vida Nova. Parte 5 - A Doutrina da Aplicação da Redenção – p. 549 - 714

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