A Igreja está tão doente quanto o mundo
Publicado originalmente em Revista Ultimato
O psicoterapeuta suíço e pastor da igreja reformada Paul Tournier, autor de vários livros (“Bíblia e Medicina”, “Da Solidão à Comunidade”, “Os Fortes e os Fracos”), dedicou o seu livro “Mitos e Neuroses” aos seus filhos Jean-Louis e Gabriel e à geração jovem de seu tempo, pedindo “perdão por lhe haver legado um mundo tão enfermo”.
Duas observações são necessárias. O mundo não estava doente só na época em que Tournier escreveu o livro (1947). O mundo sempre esteve enfermo. Basta ler os muitos volumes da história da humanidade. A outra observação é: para tratar de um mundo doente, nada melhor do que uma Igreja saudável. Acontece, porém, que a Igreja está tão doente quanto o mundo, embora em seu seio haja várias e bem-aventuradas ilhas de resistência. Em vez de ser a luz do mundo e o sal da terra, a Igreja deixou-se contagiar com o mundo.
Não é novidade. Muito se tem escrito a respeito da influência do mundo sobre a igreja, transformando-a numa verdadeira empresa. Nenhuma empresa sobrevive sem produtos, lojas (pontos de venda), vendas, vendedores, lucros, propaganda, concorrência. De tudo isso certos setores modernos da igreja têm lançado mão com reconhecido sucesso. Por exemplo, os pontos de venda seriam as igrejas abertas o dia inteiro e os produtos seriam não as boas novas da salvação, mas as boas novas da cura e da prosperidade material (sucesso profissional, posição social elevada, bens de consumo de alto valor e em grande quantidade).
Poucas empresas fariam um marketing tão bem sucedido quanto o das igrejas neopentecostais. Elas não economizam dinheiro na propaganda da marca (nome da denominação) e de seus fundadores e dirigentes supremos. Elas compram os mais longos horários da televisão, publicam jornais, revistas em grandes tiragens. Dentro de uma destas revistas sempre há um DVD com mensagens do fundador, cuja foto e cujo nome aparecem em todos os números e em grande quantidade.
Os muitos lançamentos de livros, nas principais cidades brasileiras e de outros países, do líder de outro grupo neopentecostal foram feitos com enormes estardalhaços, com filas de leitores que queriam o seu autógrafo ou da pessoa que o representava. O testemunho de cura ou de bênção que essas revistas publicam dificilmente é atribuído a Deus ou a Jesus. Os agraciados mencionam o nome do líder, o nome do programa de televisão que eles fazem ou o nome da denominação neopentecostal. Nenhum deles repele a homenagem indevida, como Paulo e Barnabé fizeram em Listra (At 14.11-18). Estes homens talvez nunca tenham lido a repreensão do anjo a João na ilha de Patmos: “Não faça isso [curvar-se aos meus pés]! Sou servo como você e seus irmãos, os profetas, e como os que guardam as palavras deste livro. Adore a Deus!” (Ap 22.9). No dia em que eles se diminuírem, certamente os impérios eclesiásticos que eles fundaram cairão por terra.
Outra evidência do estilo empresarial é a concorrência que existe entre as denominações neopentecostais. Aliás, essa chaga afeta também outras denominações pentecostais e históricas e a própria Igreja Católica, mesmo que elas estejam distantes da ideia de mercado. Nesse caso, a concorrência seria uma espécie de defesa contra os neopentecostais. Há uma corrida entre cantores gospel protestantes e cantores gospel católicos, entre megaeventos protestantes e megaeventos católicos, entre megatemplos protestantes e megatemplos católicos. Segundo reportagem de “Veja BH” de julho de 2012, “a construção da Catedral Cristo Rei não deixa de ser uma das respostas ao avanço dos evangélicos”, já que o número de católicos da diocese de Belo Horizonte tem caído e o de evangélicos tem subido. A nova catedral “terá capacidade quatro vezes maior que a do imenso templo erguido pela Igreja Universal do Reino de Deus”. Em linguagem clara, isso significa competição religiosa, algo totalmente estranho ao espírito evangélico.
A tentação da concorrência, inclusive da parte da Igreja Católica, é tal que alguns teólogos católicos começam a se pronunciar. Luiz Carlos Susin, ex-presidente da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião e professor da PUC-RS, diz que “a melhor coisa é a gente caminhar um ao lado do outro, sem fazer guerra de ciúmes porque uma comunidade cresceu e a nossa ficou menor”. Outro teólogo, Agenor Brighenti, especialista em teologia pastoral e presidente do Instituto Nacional de Pastoral (INP) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), é mais explícito: “Um dos riscos da Igreja é de simplesmente entrar na disputa do mercado e usar meios de evangelização que não sejam tão evangélicos no contexto de hoje. Cabe à Igreja não apostar tanto em massa, tanto em número, tanto em marketing, visibilidade e prestígio, mas é preciso que sinalize e testemunhe uma vivência do reino de Deus na simplicidade”. Mesmo tendo perdido considerável espaço para os evangélicos na última década, Susin explica que o grande evento da Jornada Mundial da Juventude, realizado no Rio de Janeiro em julho, “não deve ser lido como uma tentativa da Igreja de recuperar território e rivalizar com outras denominações” (“Cidade Nova”, julho de 2013, p. 23).
A falta de simplicidade é outra marca que caracteriza a igreja doente. A entrevista que um líder pentecostal (não neopentecostal) concedeu a “Veja” em junho de 2012 o nivelou com empresários ricos que têm carro importado e blindado, avião, imóveis aqui e no exterior. Dois leitores da matéria de capa de “Veja BH” de junho de 2013 também ficaram incomodados com a falta de simplicidade da cantora cuja foto aparece na capa. Um deles escreveu: “A ostentação de adereços e o excesso de maquiagem não remetem a Deus”.
O mesmo poderia ser dito da milenar pomposidade do Vaticano, à qual o atual papa parece contrário. A doença da vaidade de aparência, de títulos e de poder tem tomado conta de muitos líderes evangélicos das três correntes: histórica, pentecostal e neopentecostal. A seu tempo, Deus cobrará tudo isso e o preço será alto demais, pois o livro de Provérbios coloca isso em pratos limpos: “Primeiro vem o orgulho; depois, a queda – quanto maior é o ego, maior é o tombo” (PV 16.18).
A mercantilização da igreja, a concorrência e a ostentação estão de tal modo arraigadas que a esperança de cura é muito pequena. Uma das razões é que o povo já se acostumou com todos esses desvios e chega a tirar proveito deles, além de bater palmas para os seus responsáveis. Neste sentido, aquele cartaz contra a corrupção do país que dizia “Afasta de mim este cale-se” foi muito oportuno. O “quem cala consente” de Artur Azevedo é uma verdade muito séria. Se mais pessoas abrissem a boca para, com isenção de ânimo e com humildade, lutar contra a profanação do evangelho, esses grupos não cresceriam tanto! Além do mais, o sucesso numérico e de bens é tão grande que outros grupos neopentecostais podem ser formados e denominações pentecostais e denominações históricas podem corromper-se, o que já vem acontecendo. A doença da teologia da prosperidade é contagiosa. “A falta de ética e o narcisismo religioso” -- diz Ricardo Barbosa, autor de “A Espiritualidade, o Evangelho e a Igreja” -- “é uma praga muito ampla”.
Quem abriu a boca outro dia foi Valdir Steuernagel, presidente da Aliança Cristã Evangélica Brasileira: “A assim chamada teologia da prosperidade tem materializado a bênção de Deus, nos tornando cristãos consumistas”. Essa busca de benefícios pessoais, completa Steuernagel, “acaba provocando um profundo desvirtuamento da fé cristã” (“Jornal Nosso Tempo”, dezembro de 2012, p. 12).
Outra voz, mais recente, é a do sociólogo em ciência da religião e padre católico Inácio José do Vale, de Volta Redonda, RJ: “O neopentecostalismo é a suprema heresia do cristianismo pós-moderno e o seu fundamento é a exotérica teologia da prosperidade”. Em seguida, o padre diz: “A nossa era é refém dos grandes escândalos entre igrejas e dinheiro, evangelho e mercado, fé e heresias, seitas e denominações, pastores e mercenários, Bíblia e mercantilismo, ecumenismo e cismas, escatologia e fundamentalismo apocalíptico”. Inácio José cita vários autores protestantes, como o pastor Valdemar Figueiredo: “Já foi provado que a igreja eletrônica gera mais antipatia do que conversos; enche mais os bolsos do que as almas; constrói mais celebridades do que gente; reúne mais multidão do que rebanho”. O dramático artigo do padre Inácio José do Vale foi publicado em “O Lutador” (11 a 20 de julho de 2013, p. 15).
Para tratar de um mundo doente, nada melhor que uma Igreja sadia. Acontece, porém, que a Igreja está tão doente quanto o mundo. Todos nós temos a obrigação de orar:
“Ó Deus, coloca-nos em UTI. Trata de nós! Cuida de nós! Cura-nos!”
Duas observações são necessárias. O mundo não estava doente só na época em que Tournier escreveu o livro (1947). O mundo sempre esteve enfermo. Basta ler os muitos volumes da história da humanidade. A outra observação é: para tratar de um mundo doente, nada melhor do que uma Igreja saudável. Acontece, porém, que a Igreja está tão doente quanto o mundo, embora em seu seio haja várias e bem-aventuradas ilhas de resistência. Em vez de ser a luz do mundo e o sal da terra, a Igreja deixou-se contagiar com o mundo.
Não é novidade. Muito se tem escrito a respeito da influência do mundo sobre a igreja, transformando-a numa verdadeira empresa. Nenhuma empresa sobrevive sem produtos, lojas (pontos de venda), vendas, vendedores, lucros, propaganda, concorrência. De tudo isso certos setores modernos da igreja têm lançado mão com reconhecido sucesso. Por exemplo, os pontos de venda seriam as igrejas abertas o dia inteiro e os produtos seriam não as boas novas da salvação, mas as boas novas da cura e da prosperidade material (sucesso profissional, posição social elevada, bens de consumo de alto valor e em grande quantidade).
Poucas empresas fariam um marketing tão bem sucedido quanto o das igrejas neopentecostais. Elas não economizam dinheiro na propaganda da marca (nome da denominação) e de seus fundadores e dirigentes supremos. Elas compram os mais longos horários da televisão, publicam jornais, revistas em grandes tiragens. Dentro de uma destas revistas sempre há um DVD com mensagens do fundador, cuja foto e cujo nome aparecem em todos os números e em grande quantidade.
Os muitos lançamentos de livros, nas principais cidades brasileiras e de outros países, do líder de outro grupo neopentecostal foram feitos com enormes estardalhaços, com filas de leitores que queriam o seu autógrafo ou da pessoa que o representava. O testemunho de cura ou de bênção que essas revistas publicam dificilmente é atribuído a Deus ou a Jesus. Os agraciados mencionam o nome do líder, o nome do programa de televisão que eles fazem ou o nome da denominação neopentecostal. Nenhum deles repele a homenagem indevida, como Paulo e Barnabé fizeram em Listra (At 14.11-18). Estes homens talvez nunca tenham lido a repreensão do anjo a João na ilha de Patmos: “Não faça isso [curvar-se aos meus pés]! Sou servo como você e seus irmãos, os profetas, e como os que guardam as palavras deste livro. Adore a Deus!” (Ap 22.9). No dia em que eles se diminuírem, certamente os impérios eclesiásticos que eles fundaram cairão por terra.
Outra evidência do estilo empresarial é a concorrência que existe entre as denominações neopentecostais. Aliás, essa chaga afeta também outras denominações pentecostais e históricas e a própria Igreja Católica, mesmo que elas estejam distantes da ideia de mercado. Nesse caso, a concorrência seria uma espécie de defesa contra os neopentecostais. Há uma corrida entre cantores gospel protestantes e cantores gospel católicos, entre megaeventos protestantes e megaeventos católicos, entre megatemplos protestantes e megatemplos católicos. Segundo reportagem de “Veja BH” de julho de 2012, “a construção da Catedral Cristo Rei não deixa de ser uma das respostas ao avanço dos evangélicos”, já que o número de católicos da diocese de Belo Horizonte tem caído e o de evangélicos tem subido. A nova catedral “terá capacidade quatro vezes maior que a do imenso templo erguido pela Igreja Universal do Reino de Deus”. Em linguagem clara, isso significa competição religiosa, algo totalmente estranho ao espírito evangélico.
A tentação da concorrência, inclusive da parte da Igreja Católica, é tal que alguns teólogos católicos começam a se pronunciar. Luiz Carlos Susin, ex-presidente da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião e professor da PUC-RS, diz que “a melhor coisa é a gente caminhar um ao lado do outro, sem fazer guerra de ciúmes porque uma comunidade cresceu e a nossa ficou menor”. Outro teólogo, Agenor Brighenti, especialista em teologia pastoral e presidente do Instituto Nacional de Pastoral (INP) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), é mais explícito: “Um dos riscos da Igreja é de simplesmente entrar na disputa do mercado e usar meios de evangelização que não sejam tão evangélicos no contexto de hoje. Cabe à Igreja não apostar tanto em massa, tanto em número, tanto em marketing, visibilidade e prestígio, mas é preciso que sinalize e testemunhe uma vivência do reino de Deus na simplicidade”. Mesmo tendo perdido considerável espaço para os evangélicos na última década, Susin explica que o grande evento da Jornada Mundial da Juventude, realizado no Rio de Janeiro em julho, “não deve ser lido como uma tentativa da Igreja de recuperar território e rivalizar com outras denominações” (“Cidade Nova”, julho de 2013, p. 23).
A falta de simplicidade é outra marca que caracteriza a igreja doente. A entrevista que um líder pentecostal (não neopentecostal) concedeu a “Veja” em junho de 2012 o nivelou com empresários ricos que têm carro importado e blindado, avião, imóveis aqui e no exterior. Dois leitores da matéria de capa de “Veja BH” de junho de 2013 também ficaram incomodados com a falta de simplicidade da cantora cuja foto aparece na capa. Um deles escreveu: “A ostentação de adereços e o excesso de maquiagem não remetem a Deus”.
O mesmo poderia ser dito da milenar pomposidade do Vaticano, à qual o atual papa parece contrário. A doença da vaidade de aparência, de títulos e de poder tem tomado conta de muitos líderes evangélicos das três correntes: histórica, pentecostal e neopentecostal. A seu tempo, Deus cobrará tudo isso e o preço será alto demais, pois o livro de Provérbios coloca isso em pratos limpos: “Primeiro vem o orgulho; depois, a queda – quanto maior é o ego, maior é o tombo” (PV 16.18).
A mercantilização da igreja, a concorrência e a ostentação estão de tal modo arraigadas que a esperança de cura é muito pequena. Uma das razões é que o povo já se acostumou com todos esses desvios e chega a tirar proveito deles, além de bater palmas para os seus responsáveis. Neste sentido, aquele cartaz contra a corrupção do país que dizia “Afasta de mim este cale-se” foi muito oportuno. O “quem cala consente” de Artur Azevedo é uma verdade muito séria. Se mais pessoas abrissem a boca para, com isenção de ânimo e com humildade, lutar contra a profanação do evangelho, esses grupos não cresceriam tanto! Além do mais, o sucesso numérico e de bens é tão grande que outros grupos neopentecostais podem ser formados e denominações pentecostais e denominações históricas podem corromper-se, o que já vem acontecendo. A doença da teologia da prosperidade é contagiosa. “A falta de ética e o narcisismo religioso” -- diz Ricardo Barbosa, autor de “A Espiritualidade, o Evangelho e a Igreja” -- “é uma praga muito ampla”.
Quem abriu a boca outro dia foi Valdir Steuernagel, presidente da Aliança Cristã Evangélica Brasileira: “A assim chamada teologia da prosperidade tem materializado a bênção de Deus, nos tornando cristãos consumistas”. Essa busca de benefícios pessoais, completa Steuernagel, “acaba provocando um profundo desvirtuamento da fé cristã” (“Jornal Nosso Tempo”, dezembro de 2012, p. 12).
Outra voz, mais recente, é a do sociólogo em ciência da religião e padre católico Inácio José do Vale, de Volta Redonda, RJ: “O neopentecostalismo é a suprema heresia do cristianismo pós-moderno e o seu fundamento é a exotérica teologia da prosperidade”. Em seguida, o padre diz: “A nossa era é refém dos grandes escândalos entre igrejas e dinheiro, evangelho e mercado, fé e heresias, seitas e denominações, pastores e mercenários, Bíblia e mercantilismo, ecumenismo e cismas, escatologia e fundamentalismo apocalíptico”. Inácio José cita vários autores protestantes, como o pastor Valdemar Figueiredo: “Já foi provado que a igreja eletrônica gera mais antipatia do que conversos; enche mais os bolsos do que as almas; constrói mais celebridades do que gente; reúne mais multidão do que rebanho”. O dramático artigo do padre Inácio José do Vale foi publicado em “O Lutador” (11 a 20 de julho de 2013, p. 15).
Para tratar de um mundo doente, nada melhor que uma Igreja sadia. Acontece, porém, que a Igreja está tão doente quanto o mundo. Todos nós temos a obrigação de orar:
“Ó Deus, coloca-nos em UTI. Trata de nós! Cuida de nós! Cura-nos!”
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