Um enigma para Nicodemos



(João 3.1-17)

Por Derval Dasilio em Ultimato Online

“Na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais: /ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais. /Nossos ídolos ainda são os mesmos,/ e as aparências não enganam não. /Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais” (Belchior).

O diálogo com Nicodemos altera a “lógica” comum do evangelho: diálogo e testemunho sobre a fé autêntica. Nicodemos respeita Jesus, mas se encontra dependente da primeira discussão: a “fé” que depende de milagres. A “fé” que exige sinais não corresponde à fé num mundo novo possível, sob o governo de Deus. E Jesus propõe uma mudança radical, não um novo conceito de renovação da fé. Não uma renovação, mas uma inovação: começar tudo do zero! Do nada. Desaprender o catecismo! Nascer de novo. Começar como um nascituro, abraçar uma natureza nova (natus, “nascido” procede de “natura”, no latim).

Nicodemos quer conversar logicamente, como um cartesiano dos dias atuais, utilizando do argumento e da prova. Em pauta “gnosis”, o conhecimento. A salvação pelo conhecimento. Não é possível, diria Jesus. É preciso desmontar a doutrina vigente, parafuso por parafuso, e construir tudo de outra maneira. Existencialmente, como diria Heidegger (1), hoje. O Deus de Jesus está sempre fora do lugar que queremos (u-topos). Ele habita nos sonhos de liberdade e convive com quem imagina ser possível um mundo novo: “vejo vir vindo no vento, o cheiro da nova estação...” (Belchior).

Estamos discutindo os graus de intensidade e estabilidade da fé (João 3.1-17). Uma fé incipiente, primária, pode ser dominada pela necessidade de sinais, milagres. Internamente, o eixo se desloca para a insegurança e a deficiência da consciência humana, uma vez que falta o essencial, que é a “confiança interior plena” (“emmunah” no hebraico e “pisteuo” no grego). “Deus não vê como os homens, estes veem a aparência. O Senhor vê o coração”, isto é: Deus vê o íntimo do homem e das coisas (Pv 15.11; 1 Sm 16.7; Sl 139.1-4).

Perguntas importantes, implícitas, ou subentendidas: "O que eras antes do nascimento? Qual o lugar de onde vens? Que fazes, agora, para dar sentido à tua origem?" Importa não paramos os questionamentos sobre o sentido da vida, desde o primeiro sopro. Conhecendo as nossas origens, os lugares existenciais desde o início, inevitavelmente conheceremos nosso fim e quem realmente somos. (“Pois ele conhece a nossa origem, sabe que viemos do pó” - Sl 103,14). Portanto, é “necessário nascer de novo!”, é preciso tomar uma nova consciência.

A razão diz que o homem está só no universo, pode apenas contar consigo mesmo. A fé, de outro modo, dirá que há um Tu, um Deus solidário e dialogante, que perpassa nossa existência, constantemente. Não estamos sós na imensidão do tempo. No portal da eternidade está escrito um nome: Deus, Energia presente no universo inteiro, muito além e muito acima das realidades sujeitas às ilusões do conhecimento empírico.

Deus é um companheiro de jornada, no escalar de picos elevados e no mergulho em abismos profundos. Algo que só a fé e o amor percebem. Todos os seres vivos podem testemunhar esta Energia criadora. Os pássaros cantam ao amanhecer, os grilos e as cigarras no entardecer. Oram, em exaltação de bem-estar e reconhecimento agradecido pela existência (Nilton Bonder). Os Salmos falam desse Deus: “Tudo que é vivo exalta o Criador”!

Aqui está, praticamente, uma discussão rabínica, dirigida ao Thalmud ou à Torah: “be-reshit” e “en arché”, no princípio! Uma entrada no mundo temporal. Mas há algo de novo no recomeço de nossos atos, na origem dos pensamentos, de nossas sensibilidades quanto ao sentimento de estar-no-mundo? O que existe no começo de uma nova pulsão, de um grito de angústia, de uma reforma no ser primal? O que existe no começo de uma nova utopia, de um sonho novo, um devaneio libertário (Bachelard)?

A proposta de Jesus a Nicodemos é radical: ver tudo de novo, desde a origem, colocar-se em uma situação peculiar diante da vida: o rosto de Deus está no próximo, como disse Emmanuel Lévinas. Há um Tu, um Deus solidário e dialogante, que perpassa nossa existência, constantemente. E, em Mateus (25), Jesus responde à pergunta “onde te vimos?”: “o próximo era eu” (quando me vestistes, destes-me de beber e de comer, me agasalhaste, me visitaste quando doente ou na prisão). A fraternidade, solidariedade, partilha; o cuidado com o próximo, permite ver a face de Deus.

O inverso está na desconfiança, na indiferença, no desprezo ou no abandono do outro e da outra. Jesus responde rigorosamente à objeção de Nicodemos. Desde o Êxodo, ainda no exílio, a função “principal” do Espírito é uma indicação de liberdade criadora. Quem nasce desse Espírito/Vento novo, experimenta o que Edu Lobo ensina na canção: “O vento vira e, do vendaval surge o vento bravo... / como um sangue novo; / como um grito no ar. / Correnteza de rio / que não vai se acalmar./ Não vai se acalmar!”. Enquanto a Criação for humilhada; enquanto houver opressão, desigualdade, no mundo criado, não haverá respostas suficientes quanto ao descontentamento de Deus com o homem e a mulher que não aceitam abraçar uma nova natureza.

Em Cristo.


Notas:

1 -  Martin Heidegger (Meßkirch, 26 de Setembro de 1889 — Friburgo em Brisgóvia, 26 de Maio de 1976) foi um filósofo alemão. É um dos pensadores fundamentais do século XX - ao lado de Russell, Wittgenstein, Adorno, Popper e Foucault - quer pela recolocação do problema do ser e pela refundação da Ontologia, quer pela importância que atribui ao conhecimento da tradição filosófica e cultural. Influenciou muitos outros filósofos, dentre os quais Jean-Paul Sartre.

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