Tudo que vem do mundo é mau?
É verdade que a Bíblia nos ensina que o mundo está no
maligno e que é caracterizado pelos maus desejos da carne, dos olhos e pela
soberba da vida (1Jo 5.19; 2.16). Depois que Adão pecou no jardim, a humanidade
está debaixo do juízo de Deus, sujeita às operações de satanás e seus anjos (Ef
2.1-3), cega em sua arrogância. Entretanto, fica claro que em meio a tudo isso
Deus tem usado de misericórdia, paciência e favor para com a humanidade caída,
a começar do fato que não nos mata e nem manda para o inferno imediatamente
após nossos pecados. Pecamos e ainda vai demorar um tempo até recebermos a
morte como castigo.
Além disso, é óbvio, olhando o mundo ao nosso redor, que não
só existe maldade no mundo. Descrentes e
pessoas que adoram ídolos desfrutam de saúde, prosperidade, são
criativos, fazem invenções médicas e científicas que facilitam a vida das
pessoas e aliviam o sofrimento dos que padecem. Gente que não acredita em Deus
abre creches, orfanatos e hospitais, fazem grandes doações de dinheiro para
instituições de caridade e escolas. E tem muita gente descrente que é mais
honesta, sincera e íntegra que muitos evangélicos. Além disso, descrentes são
capazes de escrever livros, fazer filmes, compor músicas e obras de arte que
nos enlevam e enchem de admiração.
De onde procede o bem que encontramos nesse mundo caído? De onde vem as virtudes, a moralidade, a racionalidade, a bondade, a criatividade, a compaixão, a beleza, a estética, a harmonia, a sinfonia de sons, cores e formas que enchem os nossos olhos e os ouvidos? A resposta evidente é: Deus. É dele que procede todo bem que há no mundo. Primeiro, sua imagem (Imago Dei) permanece no homem, mesmo que caído. Segundo, ele derrama suas bênçãos sobre a humanidade como um todo. É isso que chamamos de graça, um favor não merecido. E pelo fato dessa graça alcançar a todos, crentes e descrentes, é chamada de “graça comum”.
Existem várias passagens bíblicas que nos falam dessa graça, embora sem usar o termo. Lemos em Gênesis 4.20-22 que os descendentes de Caim, filhos do perverso Lameque, foram aqueles que desenvolveram a metalurgia, instrumentos de sopro e corda e outras coisas que são boas para toda a humanidade. Todo crente já tirou grande beneficio das criações dos filhos de Caim! Jesus disse que “[Deus] faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos” (Mt 5.45) e que ele “é benigno até para com os ingratos e maus” (Lc 6.35). Paulo disse aos pagãos na cidade de Listra que “nas gerações passadas, [Deus] permitiu que todos os povos andassem nos seus próprios caminhos; contudo, não se deixou ficar sem testemunho de si mesmo, fazendo o bem, dando-vos do céu chuvas e estações frutíferas, enchendo o vosso coração de fartura e de alegria” (At 14.16-17).
O livro dos Salmos celebra a
graça de Deus sobre todas as suas criaturas: “O Senhor é bom para todos, e as
suas ternas misericórdias permeiam todas as suas obras... Em ti esperam os
olhos de todos, e tu, a seu tempo, lhes dás o alimento. Abres a mão e
satisfazes de benevolência a todo vivente” (Sl 145.9,15-16). Todas as coisas
boas que existem no mundo procedem de Deus, como disse Tiago: “Toda boa dádiva
e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode
existir variação ou sombra de mudança” (Tg 1.17). Foi por isso que Paulo
autorizou os crentes de Corinto a comprar e comer carne no mercado, ainda que
essa carne tenha sido oferecida aos demônios: “Comei de tudo o que se vende no
mercado, sem nada perguntardes por motivo de consciência; porque do Senhor é a
terra e a sua plenitude” (1Co 10.25-26).
Lembremos ainda que na construção do templo Deus utilizou
obras de arte e habilidades conferidas a descrentes, a artífices e artistas que
vieram de Tiro e Sidom (2Cr 2.18; veja ainda 2Sm 5.11). Não são somente os
crentes que constroem elevadores que param no lugar certo, pontes e edifícios
que não caem e cirurgiões que executam cirurgias precisas e possuem altíssima
competência - os crentes têm o privilégio e dever de creditar essas habilidades
ao Deus soberano. Paulo faz citações de filósofos da antiguidade, que não eram
crentes, e até de dramaturgos gregos (1Co 15.33), demonstrando que "toda
verdade é verdade de Deus".
Em resumo, “graça comum” é a maneira misericordiosa pela
qual Deus abençoa a humanidade com saúde, prosperidade, talentos, capacidades,
sabedoria, entendimento, valores morais, com base unicamente em sua bondade e
não com base nos méritos das pessoas. A “graça comum” é diferente da “graça
especial” em vários aspectos. A graça comum não prepara o descrente para a salvação
e nem produz perdão de pecados, a graça especial sim. A graça comum é dada a
todos, a graça especial somente aos eleitos (salvação, perdão de pecados e vida
eterna). A graça comum decorre da misericórdia de Deus como Criador, a graça
especial flui do amor de Deus Redentor, baseado na morte de Cristo na cruz do
Calvário pelos nossos pecados.
É a graça comum que permite que nós possamos nos relacionar
com pessoas descrentes nas áreas em que não se comprometam as verdades
bíblicas. É a graça comum que permite que nós usufruamos das descobertas e
invenções dos descrentes, como redes sociais, avanços médicos, descobertas
tecnológicas. É a graça comum que permite que nós desfrutemos daquelas obras de
literatura, arte, música e cinema que não ofendam os valores cristãos e nem nos
levem a comportamento pecaminoso.
Quando você leva a receita do médico à farmácia você não
tenta saber se o laboratório que desenvolveu o antibiótico é de cristãos ou
não. Você é grato a Deus pelo remédio e rapidamente começa o tratamento de seu
filho febril. Quando você vai comprar um carro, você olha diversos fatores, mas
não vai atrás de descobrir se o projetista da Chevrolet era crente quando fez
esse modelo.
Contudo, sempre devemos ser criteriosos ao usar das coisas desse mundo. “Julgai todas as coisas, retende o que é bom,” disse Paulo (1Ts 5.21). Embora o contexto dessa frase sejam as profecias na igreja, o princípio geral é válido para todas as áreas da vida. Nesse mundo o bem e o mal estão profundamente entrelaçados em tudo. Precisamos de critério e firmeza para rejeitar o mal e humildade e sabedoria para discernir o bem e dele usufruirmos com ações de graças.
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